sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Liquidificador


Havia um cômodo sombrio e nele apenas uma alma perdida deitada sobre as sombras. Ele estava tentando voltar, a desejava e a queria consigo, percorreu os quatro cantos até possuí-la outra vez. Ela levantou-se e permitiu a sua chegada, não tão receptiva como outrora, mas deixou-se levar novamente. Ele aproveitou-se e fazia tudo girar, fez seu corpo formigar e fez com que ela sentisse o seu calor, queimava-a com o fogo da onde vem.
A guerra começou pouco depois de ela abrir o portal e chamar pelas trevas, perdera a voz e os sentidos, ele não a deixou dizer não, guardou-a para si e a fez queimar. Tomando-a pela mão mostrou-lhe novamente a sua origem, ela sentiu o corpo tremer e o arrependimento tocando-a, tarde demais Ele dizia, debochando em seus ouvidos.
Ela resistiu quando um rosto novo se aproximava pedindo-a para voltar, tarde demais, ela ainda o ouvia, perdera o controle outra vez e jogou-se ao chão, sua presença ainda era viva e ela ainda o sentia enquanto imóvel queimava em dor.
Ele sabia como a trazer para si, pois já o tinha feito e não falharia outra vez, mas ela parecia resistir ao seu chamado, ela se prendia ao que Ele denominava de Fé ao seu inferior e, não foi o nome Dele que ela chamou enquanto angustiada gritava por dentro. Ele trouxe o maior fantasma de seu passado e divertia-se com o medo que causara, prometera arrancar o seu presente e ria da sua fragilidade. Foi quando ela se apegou ainda mais a sua pequena resistência e isso o irritou, ela ouvira um novo canto numa voz doce e suave, sobretudo, irreconhecível. Ele partiu para possuir os dois mais fracos.
A voz vinha ao seu encontro e ela encontrou paz no olhar desconhecido. A mulher parou diante dela e ela soube que iria morrer para se libertar. Sua única frase da noite foi o consentimento de sua morte. A mulher com o seu manto e a sua coroa brilhante friamente a matou. Imóvel, ela estava partindo dali, sua alma gritou num tom agudo e ela deixara seu corpo sem vida jogado ao chão ao lado de um rosto amedrontado.
Olharam-se e ela sabia de alguma forma, que a mulher estava a sua espera, seguiu-a mantendo o seu silencio. Percorreram o corredor enquanto os olhos alheios olhavam-nas com espanto, o garoto nada entendera, mas não era preciso, a regra foi manter a inocência de uma criança fora da guerra dos dois mundos.
Junto à mulher ela encontrou outra vez com Ele, desta fez Ele não a usara e estava furioso, é você que eu quero, ela ainda podia escutá-lo próximo aos seus ouvidos, via o fogo em seu olhar, mas agora ela estava imune ao seu calor. A mulher a olhou e os pensamentos de ambas se encontraram, ela sabia que precisava distanciar-se por um momento para que ele partisse, mas ele não o fez. Eram dois contra dois e o restante incrédulo, não tinha idéia de quem apostar.
Com o seu manto e sua coroa, ela partiu levando a todos a sua palavra que quase sempre era ignorada, disse com sua voz suave o que cada um precisava ouvir e ela seguia a mulher fielmente. Seu corpo ainda não o pertencia e seus sentidos não eram necessários, ela era apenas a sua alma e era exatamente isso o que a preocupava, a cor escura com que a tingiu. Ele voltara ainda mais forte, desta vez no corpo fraco que o desejava. Travaram outra batalha, todos estavam feridos, todos possuíam uma fresta em suas almas, portanto não haveria de fato, vencedores. O dia começou a surgir, mas a luz do sol era ofuscada pelas sombras que rodeavam as paredes da casa. Por fim, Ele a buscou. A mais poderosa de todas, tirou-lhe o manto e invadiu seu corpo. Ele sorria enquanto notava o desespero dos demais e alegrava-se com os que estavam com Ele. Então,  percebeu que seria ela quem deveria salvar a mulher, uniu forças e lutou até expulsá-lo. Aparentemente ele havia partido, então todos cansados de uma luta sem trégua, adormeceram. Exceto aquela a quem ele possuíra, esta estava imóvel deitada em sua cama, mas ao olhá-la ela sabia que estava além disso, esta estava deitada em seu tumulo onde mais tarde encontraria o que perdera. 
Por fim, ela sabia que ainda não havia acabado, tentara se desligar e voltar para o seu mundo, mas não conseguia encontrar um caminho de volta, então enquanto todos retornavam aos seus corpos, silenciosamente ela ajoelhara-se e fechara o portal, na esperança de nunca mais o encontrá-lo. Voltara ao cômodo em que estava na busca de paz para enfim adormecer. Não aconteceu.
O sol se posicionava no céu logo pela manhã, os rostos confusos já não sabiam dizer o que havia acontecido, apenas uma breve parte do ocorrido era suportado por suas memórias.
Ele não voltara. Não aquela manhã. Mas ela sabia que o que havia acontecido talvez tivesse sido uma de suas experiências mais reais. E que Ele voltaria.  Cedo ou tarde.

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